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A exposição temporária “Pertencimentos transnacionais: movimentos e ritmos na música africana” e algumas notas sobre a Festa do Imigrante
Thiago Haruo Santos – Coordenador de pesquisa
Introdução
No dia 02 de julho de 2024, foi inaugurada a exposição temporária “Pertencimentos transnacionais: movimentos e ritmos na música africana”, com curadoria e pesquisa de Caio Silveira Fernandes, parceria do Museu da Imigração do Estado de São Paulo, e apoio do Ministério Federal da Educação e Pesquisa da Alemanha, por meio do Maria Sibylla Merian Centre Conviviality-Inequality in Latin America.
Composta de registros feitos em oficinas de dança e percussão da África Ocidental, conduzidas por quatro músicos migrantes de Guiné-Conacri residentes em São Paulo, a exposição reflete sobre a simultaneidade da experiência migratória nos âmbitos social, cultural, político e territorial.
Este texto busca refletir sobre os conceitos mobilizados na exposição, para colocar em análise o maior evento realizado pelo Museu da Imigração: a Festa do Imigrante. Considerando que cenas da Festa surgem em vários momentos da temporária, ela se mostrou uma interessante oportunidade para refletir, afinal, quais tipos de interação o grande evento proporciona para o público.
Promovida pelo Museu desde 1996, a Festa do Imigrante nasceu do desejo das comunidades de compartilhar seus conhecimentos e culturas. Para migrantes internacionais e seus descendentes, ela foi, desde o início, uma rica oportunidade de apresentar a gastronomia, a música, o vestuário, a dança e o artesanato característicos de seus países de origem. Um lugar para preservar e disseminar o patrimônio material e imaterial dessas comunidades e do processo migratório do Estado de São Paulo.
Oportunidade para conhecer diversas expressões vinculadas aos processos migratórios, a música e a dança, apresentados nos palcos e nas oficinas, proporcionam espaços de conexão entre artistas e público. Ao trazer uma análise sensível e sistemática dessas interações musicais, a exposição “Pertencimentos transnacionais: movimentos e ritmos na música africana” (“Pertencimentos transnacionais”) constituiu-se uma interessante porta de entrada para entender uma das facetas mais potentes da Festa do Imigrante.
A exposição temporária
A exposição “Pertencimentos transnacionais” está organizada espacialmente em três momentos distintos, ocupando parcialmente a sala de exposições denominada “Hospedaria em movimento”.
No primeiro núcleo expositivo, são apresentadas as concepções sobre música, pertencimento, identidades e participação, que artistas e seus públicos constroem a partir de interações musicais, realizadas tanto no Museu da Imigração quanto na sede do Centro de Estudos de Cultura da Guiné, localizado na Baixada do Glicério. É o momento da exposição no qual se detalha as cenas de oficinas de dança e música realizadas no Museu da Imigração durante a 28ª Festa do Imigrante (edição de 2023). Explorando o conceito de “mestres-aprendizes”, essa seção mostra a rica interação através dos olhares, tentativas de imitação e cruzamento de diferenças culturais ocorridas durante as oficinas.
O segundo núcleo da exposição foca nos ballets, sujeitos centrais na construção do movimento musical transnacional abordado. Imagens e sons capturam a potência dessas formações musicais, destacando suas trajetórias históricas e a disseminação cultural dos ritmos e danças do oeste da África, com um enfoque particular nos artistas de Guiné-Conacri.
O terceiro núcleo é dedicado ao instrumento musical Djembê, proporcionando uma experiência interativa ao visitante. Neste espaço, é possível participar de uma vídeo-aula utilizando dois instrumentos disponibilizados, permitindo uma imersão prática e direta na cultura musical.
Por toda a exposição, sete fotografias em grandes proporções permeiam os espaços. São fotografias de detalhes corporais, expressões faciais, dos instrumentos e das posturas corporais.
A sociabilidade permeada pela música na Festa do Imigrante
Boa parte do material visual e audiovisual utilizado na exposição “Pertencimentos transnacionais” decorre de momentos de dentro da Festa do Imigrante. A exposição, por tanto, oferece uma oportunidade de reflexão sobre a própria Festa e suas potencialidades quando vinculadas ao tema mais geral das migrações internacionais. Afinal, qual tipo de impacto esse tipo de atuação junto à música poderia gerar? Sendo essa uma das questões norteadoras da própria exposição, é justificado que ela seja direcionada também à Festa como um todo. Por isso, é importante começar por sua abordagem conceitual.
A primeira parte do título da exposição é indicativo de qual debate ela se vincula. O transnacionalismo é um paradigma que surgiu no final dos anos 1980, que aplicado aos estudos migratórios buscou entender as dinâmicas sociais para além das fronteiras delimitadas pelos estados nacionais. Com isso, argumentou-se que para entender a forma como grupos migratórios vivenciam suas realidades, era necessário levar em conta tanto dinâmicas e práticas do país de destino, assim como, simultaneamente, de outros locais com os quais essas pessoas mantinham vínculos, incluindo o país de origem [1].
O outro termo utilizado no nome da exposição, “Pertencimento”, aponta para outra série de questionamentos, tratado aqui neste presente texto a partir do conceito de “comunidades imaginadas” de Benedict Anderson [1]. Para esse autor, podemos pensar que nações
são imaginadas porque mesmo os membros das menores nações nunca irão conhecer a maioria dos seus companheiros, encontra-los, ou mesmo ouvi-los, ainda que nas mentes de cada um exista a imagem da comunhão deles. (...) De fato, todas as comunidades maiores que as vilas de contato cara-a-cara (talvez mesmo nestas) são imaginadas. Comunidades devem ser distinguidas, não por sua falsidade/ autenticidade, mas pela forma como foram imaginadas (Anderson, 1983, p.6).
A partir desses aportes conceituais, passamos a reconhecer que existem dinâmicas sociais que atravessam fronteiras nacionais (“transnacional”); e deixamos de questionar se determinadas formações sociais baseadas em nação são falsas ou autenticas, passando a explorar como determinadas nacionalidades são imaginadas (“Pertencimentos”).
A Festa do Imigrante, enquanto um evento embasado nas distinções a partir de nacionalidades, parece um desses lugares ideais para entender como comunidades são imaginadas. Divididas entre diversas barracas e momentos de apresentação, as nacionalidades servem para organizar o espaço da Festa, mas mais que isso, dá um lugar determinado para cada pessoa e sustenta as várias ideias de comunidade.
Nos últimos 26 anos, a Festa do Imigrante vem se expandindo e se modificando. Em 2011, por exemplo, haviam 24 nacionalidades representadas, 9 mil visitantes, 30 expositores e 26 apresentações musicais e de dança. Esses mesmos números têm um salto em 2016 para 50 nacionalidades representadas, 21 mil visitantes, 72 expositores e 45 apresentações. Na edição de 2022, os números cresceram ainda mais, com 54 países representados, 31 mil visitantes, 100 expositores de gastronomia e artesanato e 68 apresentações. Essa ampliação não só trouxe mais atrações para o público visitante, mas principalmente incluiu nacionalidades ausentes nas primeiras edições, como as comunidades de países latino-americanos ou do continente africano.
Em exposição virtual dedicada a Festa [2], um dos entrevistados, Bantu Tabasisa, cidadão de Angola e Congo, faz algumas considerações sobre a programação: “Porque este evento está mostrando um pouco o lado da África que o brasileiro não conhece”. O mesmo tipo de fala pode ser encontrado na exposição “Pertencimentos transnacionais”, em entrevista de Aboubacar Sidibé. Essa expansão da Festa, por tanto, com a entrada de nacionalidades como Angola, Camarões, Costa do Marfim, Congo, se dá em uma realidade brasileira permeada pelo racismo e pela visão colonial, que vê como símbolos de civilização apenas o chamado ocidente. A entrada dessas nacionalidades na Festa, por tanto, se dá nesse contexto de reprodução de uma visão distorcida sobre o continente africano [3].
O que a exposição temporária mostra é que a Festa, ao posicionar as pessoas a partir de suas nacionalidades, abre um momento de diálogo possível entre essas pessoas migrantes e esse contexto de reprodução de racismo e visão colonial. Não é preciso necessariamente supor que essas interações ocorram sem tensões, mal-entendidos ou mesmo a partir da reprodução de paradigmas racistas, mas é sim de se esperar que “a regra do jogo” estabelece que todas as nações se vejam igualmente representadas e isso abra um espaço de interação e aprendizado.
Dito isso, a exposição “Pertencimento transnacionais” é muito didática ao expor de maneira clara e objetiva as várias tradições que entram nessa interação. Segundo a mostra, desaguam naqueles momentos da Festa as histórias dos povos mandengue, o fundo cultural construído durante o Império do Mali, no século XIII, os processos de transformação envolvendo os ballets, e, com certo protagonismo, os poderes do Djembê em carregar uma forma de ser a partir da música.
Outra contribuição da exposição “Pertencimentos transnacionais” para analisar como ocorrem conexões transnacionais na Festa do Imigrante chamar a atenção para os diferentes registros de interação proporcionados durante o evento.
Durante a Festa do Imigrante, existem duas formas de o público ter contato com as expressões musicais e danças: as apresentações musicais feitas no palco e as oficinas de dança. Em uma programação variada de nacionalidades e estilos musicais e de dança, as apresentações no palco servem para o público conhecer o aspecto performativo das tradições apresentadas. São apresentações ensaiadas, feitas para impressionar o público com movimentos coreografados, jogos de cores e sons.
Um dos aspectos marcantes desse momento é justamente a troca existente entre os que têm o papel de dançarinos e o público. Durante a festa, a maior parte das pessoas presentes é composta pelo público visitante, mas também inclui participantes da festa. Assim, voltando ao acordo tácito mencionado anteriormente, de que o público também é um público de descendências específicas, que está assistindo às apresentações no palco das nacionalidades representadas naquele momento, as apresentações no palco abrem espaço para o reconhecimento do que é “belo” e “potente”, atravessando as identificações nacionais.
Por outro lado, no contexto das oficinas, sensivelmente retratado na mostra temporária, ocorre um processo de aprendizado a partir dos detalhes. Uma corporeidade, um olhar, uma forma de construir concentração - cada um desses elementos, difíceis de serem apreendidos apenas verbalmente, podem ser corporalmente assimilados nas oficinas.
Por fim, é nas oficinas em que mais claramente ocorre o posicionar das pessoas migrantes, especialmente aquelas de outras nacionalidades diferentes da do próprio visitante, em posição de mestre. Essa interação concretiza a possibilidade de aprendizado a partir de pessoas migrantes, reconhecendo seu lugar na sociedade. Do acordo tácito de que se trata de um espaço em que o visitante aprenderá algo sobre o qual somente um “outro”, de outra nação, tem domínio, surgem interações nem sempre observadas no cotidiano, em que as pessoas migrantes assumem o lugar de detentores de saber.
Conclusão
A exposição “Pertencimentos transnacionais: movimentos e ritmos na música africana” oferece uma perspectiva de análise sobre as dinâmicas transnacionais presentes na Festa do Imigrante. Ao destacar a importância das interações musicais e corporais, tanto nas apresentações performativas quanto nas oficinas, a mostra evidencia como essas práticas culturais contribuem para um entendimento do pertencimento e da identidade em movimento. As vivências compartilhadas pelos migrantes e seus públicos reforçam a relevância de espaços de diálogo e aprendizado mútuo, promovendo uma visão mais inclusiva e diversa das culturas representadas. Assim, a exposição não apenas celebra a riqueza das tradições africanas, mas também convida os visitantes a refletirem sobre o papel das migrações na construção de uma sociedade mais conectada e interdependente.
Referências
[1] SCHILLER, Nina Glick; BASCH, Linda; BLANC, Cristina Szanton. De imigrante a transmigrante: teorizando a migração transnacional. Cadernos CERU, São Paulo, Brasil, v. 30, n. 1, p. 349–394, 2019. DOI: 10.11606/issn.2595-2536.v30i1p349-394. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ceru/article/view/158717.. Acesso em: 26 jul. 2024.
[2] ANDERSON, B. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. Nova Iorque: Verso, 1983.
[2] https://artsandculture.google.com/story/2gUhZdEksns8IA.
[3] Como defesa dessa afirmação, pode-se relembrar, por exemplo, de toda discussão acerca da Lei 10.639, que tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira nos níveis fundamental e médio. Ver mais em: https://www.nexojornal.com.br/externo/2023/01/20/como-anda-o-ensino-de-historia-afro-brasileira-nas-escolas; ou mesmo acompanhar toda discussão desenvolvida pela campanha “A África não é um país” do @vistoafrica.